By: Paulo Marreco
Dia desses estava almoçando com um colega de trabalho. Falávamos do calor deste verão inflexível, de futebol, de filmes. Foi quando ele mencionou um dos antigos, no qual dois rapazes viajavam pelo mundo, mochila nas costas, pouca grana no bolso e uma ideia fixa na cabeça. Como era mesmo o nome do filme, perguntou. Endless Summer, respondi na lata. Isso, Endless Summer. Muito legal, aqueles dois ali, viajando, surfando ondas maravilhosas, fazendo amizades, tocando violão na praia com os novos amigos... Deve ser o maior barato, dizia ele, fascinado pelo lifestyle dos dois afortunados surfistas que viviam suas vidas numa incessante peregrinação em busca da onda perfeita. Imediatamente abri uma gaveta no meu cérebro, achei a fita naquela época não existia ainda o DVD- do filme e o coloquei pra rodar na mente. A imagem estava embaçada, ruim o filme era velho e há tempos não rodava. Mas lembrei do astral descontraído, mesmo quando os rapazes fingiam fingiam?- ser capturados por uma tribo de nativos irados. Será que Endless Summer tem mesmo esta cena?
Enfim: a menção a este clássico da filmografia do surfe e a maneira idealizada como os surfistas eram vistos por meu interlocutor, que, até onde eu saiba, nunca ficou de pé sobre uma prancha, me levaram a refletir sobre o comportamento da surfistada ao redor do globo. E, como uma coisa sempre leva a outra ainda que esta segunda coisa possa não ter absolutamente nada a ver com a primeira, da mesma forma que esta frase não tem nada a ver com esta crônica- lembrei do mais novo fenômeno de bilheteria mundial, o tridimensional, trilhardário, panfletário e azulzinho Avatar, do rei do mundo James Cameron.
Se você não foi abduzido nem esteve em coma nos últimos três ou quatro meses, saberá que o arrasa quarteirão Avatar conta a saga de um povo, os NaVi, felizes e azuis habitantes do planeta Pandora, em luta para não serem espoliados de suas terras por uma civilização mais tecnológica porém menos evoluída e muito, mas muito mais gananciosa.
Sim, PM, tudo bem; mas o que esse filme tem a ver com surfe?
Tem a ver que Avatar é nada mais, nada menos, que o velho mito do Bom Selvagem revisitado. Não é a primeira vez que Roliúdi se debruça com romantismo sobre o estereótipo do nativo inocente, que vive em completa harmonia com a natureza, retirando dela apenas o necessário para sua sobrevivência e levando a vida de maneira pacífica e contemplativa. Este papel já coube aos índios norteamericanos; agora, calhou de ser desempenhado por alienígenas de três metros de altura, azuis, rabudos e com cara de gato.
E o surfe nessa história, Paulo Marreco? Calma, já chegamos lá...
Já conversamos antes sobre o mito do Bom Selvagem, teoria desenvolvida por Rousseau para tentar explicar a origem do Estado. Segundo a ideia do filósofo suíço, o homem, em seu estado natural, seria essencialmente bom; a vida em sociedade é que o corrompe. Não sei se o cara teve, efetivamente, contato com tribos nativas (consta que tenha observado selvagens pacíficos nas Antilhas); mas dá pra saber que ele, definitivamente, não andou cá pelas bandas de Pindorama, onde os membros de tribos inimigas e também muitos portugueses- viravam jantar dos nativos. Da mesma forma, deve ter evitado as florestas da Nova Guiné, recheadas de amistosos encolhedores de cabeças. Ora, o contato direto com a natureza não fez com que apaches, comanches, cheyenes e outras tribos de ameríndios se odiassem e se matassem menos, assim como nem toda a vastidão da floresta amazônica foi capaz de gerar simpatias entre tamoios, tupinambás, pataxós, guaranis e tantos outros, que já se exterminavam mutuamente tempos antes da chegada dos terríveis exploradores portugueses e espanhóis.
E daí, Paulo Marreco?
Daí que as evidências apontam para algum aspecto tenebroso da natureza humana, algum recôndito profundo e sombrio da nossa alma, que nos leva a abrir o baú de maldades contra nossos semelhantes; a única diferença das atrocidades cometidas pelos bons selvagens e das praticadas pelos malvados civilizados está na tecnologia empregada. E, antes que você me pergunte de novo sobre o que o surfe tem a ver com tudo isso, eu finalmente digo: é que nós, surfistas, somos o bom selvagem dos tempos modernos. Os mortais comuns olham para nós como se fôssemos uma tribo de Surfistas Prateados, um bando de sujeitos pacíficos, de bichos grilos que levam a vida na praia, surfando de dia e fazendo luaus à noite, a cantar a paz, o amor, a harmonia e a preservação da natureza. A opinião do meu colega de trabalho é quase senso comum fora da comunidade surfística. Porém, olhando de dentro...
Olhando de dentro, sabemos que a coisa nem sempre funciona assim. Sabemos que, em certos lugares, os bons selvagens surfistas não são lá muito amistosos para com surfistas de tribos diferentes. Atalaia, Arpoador, Joaquina, Havaí, são lugares quase inóspitos, não recomendados para estrangeiros pela ferocidade de seus locais. Ainda não chegamos ao canibalismo; mas, do jeito que a coisa vai...
Já que estamos falando de filmes, é bom dar uma conferida no excelente Bustin Down The Door. A película (será que, nestes tempos de DVD, ainda podemos chamar filmes de película?) narra os primórdios do surfe profissional, descrevendo as aventuras e roubadas- de caras como Wayne Rabbit Bartholomeu, Mark Richards e Shaun Thomson no Hawaii, especialmente um episódio ocorrido no inverno de 1976, quando o atirado Wayne foi agredido e praticamente caçado nas ilhas e teve, literalmente, a cabeça colocada a prêmio. Apavorado, Rabbit teve que se esconder durante dias, até que uma espécie de conselho havaiano foi convocado e as coisas, mais ou menos pacificadas. O tal espírito aloha atitude de aceitação amistosa atribuída aos havaianos- ficou a milhas do episódio. Deveria estar de férias, talvez esquiando nos Alpes, bem longe dali.
Onde você quer chegar, Paulo Marreco? Está querendo dizer então que nós, surfistas, somos uns caras agressivos, territorialistas, que não suportamos a presença de pessoas estranhas em nosso picos preferidos, que não sabemos dividir ondas, que não sabemos compartilhar os momentos de surfe, que não somos capazes de conviver pacificamente, nem mesmo num ambiente de total tranquilidade e integração com a natureza? Sim e não.
Porque, infelizmente, ainda podemos ver que muitos surfistas ainda agem desta forma. Muitos se comportam dentro dágua como gladiadores numa arena. Como tribos de macacos defendendo irracionalmente seus territórios, mesmo que haja comida ou, no caso, ondas- em quantidade suficiente para todos. Estes ainda não compreendem a incrível oportunidade que cada sessão de surfe nos proporciona. Oportunidade de entrar em contato amigável e agradável com a natureza, sim; com DEUS, da mesma forma; mas também com o próximo, e cada um consigo mesmo. Como esporte, creio que o surfe seja inigualável: é relativamente barato; é praticado ao ar livre, dentro do mar, o que lhe confere uma dinâmica ímpar; proporciona excelente preparo físico, ajuda na elasticidade... E, aos enciumados defensores de outros esportes que tenham características semelhantes, apresento o argumento dos argumentos, o argumento máximo, irrefutável: SÓ O SURFE TEM TUBO! Sim, uma sessão de surfe é uma experiência única, mágica; mas a experiência do surfe só se completa quando percebemos que ela pode -e deve- ser compartilhada em harmonia com os outros membros desta privilegiada tribo de adoradores de ondas.
Mas, felizmente, alguns conseguem captar o espírito do surfe, e transformam cada sessão numa oportunidade de celebração da vida, da liberdade, da felicidade. Cada onda surfada é uma ode à vida. E, num mundo povoado de pessoas cada vez mais individualistas, mais egocêntricas, fazem do surfe uma grande confraternização entre amigos. Mesmo que o amigo seja aquele desconhecido que espera a série ao seu lado. Estes desfrutam ao máximo desta inebriante, fantástica aventura que é o surfe. E talvez estejam, realmente, se tornando uma tribo de bons selvagens...
E você? De qual destas tribos você faz parte?
Abraços, boas ondas a todos, e paz na terra aos homens, a quem DEUS quer bem!
E pra quem acha impossível, é bom lembrar que Surf se faz com a alma e o coração e não com a cabeça.
Abração galera, PC.
quinta-feira, 18 de março de 2010
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